Piedade sempre chega. É uma noite inteira fria, e o
coração entra no mato e começa a procurar a família. É uma doçura sentir aquele
vento, o leite quente do sotaque, opa, bão. Ainda no ônibus. Piedade está
sempre tão fria, sempre tão arbórea, sempre tão julho.
Uma emoção retornar, subir porções de ruas, comprar
pãozinho, chegar às seis, ouvir de quem tanto ficou grávido. Piedade está
sempre grávida, como uma mãe sagrada que me envolve, me dá o leite, tudo de que
careço. Não carece, diz minha vó em piedadês. Eu adoro contar histórias desse
não-lugar, sair, ver peça de teatro, filme no cinema, mas sempre revisitar o
meu lugar sem internet. Lá só tem minha presença. Sou eu comigo mesma, me
suportando, reabrindo minhas feridas, cicatrizando.
Minha pele está marcada, e quando o frio vem, fico
perfumada de árvore. Minha mãe sempre com um cheiro incrível, minha vó com o
cheiro da casa dela, de café, de virado de batata, meu vô com os pés grossos.
O irmão sempre uma ansiedade. Quero enfiá-lo dentro de
mim e protegê-lo, ele também já tem feridas. Faço uma capsula de cobertor e
bolo de fubá. Faço café de manhã e a cozinha está tão fria, a água lá não ferve
mais a cem graus celcius. Quero sempre colocá-lo no colo, brigar com ele, como
se fôssemos morrer no dia seguinte.
Fico perfumada de árvore, de frio, navego no rio da
marginal, no vento que corta a cara, bebo vinho e sou imensamente feliz até que
sou triste. Tudo se mexeu enquanto eu fui embora. O irmão cresceu, os amigos se
mudaram, mas minha memória estará sempre enraizada, nas estradas do sítio, nos
bairros, no cruzeirão. Sempre no primeiro beijo piedadense, na feira, na
barraca de bala, no Maria Paula (que era masculino). Tudo num compasso fora de
mim, fora da minha existência, enquanto resisto, não me movo, não cresço e
acabo por andar sozinha nessa piedade revisitada.