domingo, 22 de junho de 2014

Sempre chaga

   Piedade sempre chega. É uma noite inteira fria, e o coração entra no mato e começa a procurar a família. É uma doçura sentir aquele vento, o leite quente do sotaque, opa, bão. Ainda no ônibus. Piedade está sempre tão fria, sempre tão arbórea, sempre tão julho.

   Uma emoção retornar, subir porções de ruas, comprar pãozinho, chegar às seis, ouvir de quem tanto ficou grávido. Piedade está sempre grávida, como uma mãe sagrada que me envolve, me dá o leite, tudo de que careço. Não carece, diz minha vó em piedadês. Eu adoro contar histórias desse não-lugar, sair, ver peça de teatro, filme no cinema, mas sempre revisitar o meu lugar sem internet. Lá só tem minha presença. Sou eu comigo mesma, me suportando, reabrindo minhas feridas, cicatrizando.
   Minha pele está marcada, e quando o frio vem, fico perfumada de árvore. Minha mãe sempre com um cheiro incrível, minha vó com o cheiro da casa dela, de café, de virado de batata, meu vô com os pés grossos.
   O irmão sempre uma ansiedade. Quero enfiá-lo dentro de mim e protegê-lo, ele também já tem feridas. Faço uma capsula de cobertor e bolo de fubá. Faço café de manhã e a cozinha está tão fria, a água lá não ferve mais a cem graus celcius. Quero sempre colocá-lo no colo, brigar com ele, como se fôssemos morrer no dia seguinte.

   Fico perfumada de árvore, de frio, navego no rio da marginal, no vento que corta a cara, bebo vinho e sou imensamente feliz até que sou triste. Tudo se mexeu enquanto eu fui embora. O irmão cresceu, os amigos se mudaram, mas minha memória estará sempre enraizada, nas estradas do sítio, nos bairros, no cruzeirão. Sempre no primeiro beijo piedadense, na feira, na barraca de bala, no Maria Paula (que era masculino). Tudo num compasso fora de mim, fora da minha existência, enquanto resisto, não me movo, não cresço e acabo por andar sozinha nessa piedade revisitada.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Morre o mais obeso do mundo

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/05/morre-o-mexicano-que-chegou-a-ser-o-homem-mais-obeso-do-mundo.html

"MORRE O MAIS OBESO DO MUNDO"

Morreu como?

Depois de comer a vida toda, comeu
mais um pouco
uma maçã com sementes
e ficou mais que o maior do mundo
- quando não há mais limites.

Morreu como?

Passou a vida comendo. Comeu a lua, 
comeu todos os vizinhos, os meninos na rua,
a bola, o poste, o barulho da bola.
Um dia, quando o mundo acabou, passou a comer partes do próprio corpo e o cérebro, faltando-se um pedaço, desligou-se.
Foi morte cerebral.

Quem assumirá o posto?

Não se pode deixar um cargo tão importante como esse. O mundo não sobreviveria.
Neste momento, na Basílica de São Pedro, religiosos do mundo todo unem suas forças para que um novo maior obeso do mundo seja escolhido.

Há algum obeso à altura? 

Dificilmente o próximo obeso terá a simpatia de que o outro desfrutava. Há quem diga que o novo maior obeso do mundo carrega uma maldição. Foi condenado ao cargo quando, no princípio, Eva mostrou-lhe todas as maçãs do Éden, mas se esqueceu de dizer sobre as sementes altamente calóricas como abacates. Trata-se então, de uma indução, o que leva à conclusão de que a gordura original provém da falha feminina.

domingo, 13 de outubro de 2013

Fábulas

   Desde os quatorze anos eu lavo minhas roupas. Minha mãe um dia me disse que eu encardia demais as meias, que era difícil lavá-las e que eu deveria parar de andar descalçada. Então, eu passei a lavar minhas meias. Naquela época, nós também deixamos de comer carne todo dia, e de comer pão francês. Isso foi importante para minhas memórias. Não fossem as meias, talvez eu ainda fosse muito calçada. Não fosse a falta do pão e do leite, talvez não os ingerisse tão deliciosamente. Da mesma forma, no ensino médio decidi que não estudaria matemática. Não era dada com números, embora atribua um número aleatório à cada pessoa que conheço. Sabia que a matemática, a química e a física me faltariam, mas eu decidi. Suportei. Nunca fugi de mim.
   Foi assim que, antes mesmo de ler Le petit prince, descobri que sou inteiramente responsável pelo que cativo. Bem como minha mãe é responsável por si mesma e pelas coisas que abarca e assim por diante: cada um segue colhendo seu dia.
       Colher é o resultado de uma lavoura. Dias e dias debaixo do sol ou da chuva. Trabalhar mesmo quando o espírito não está lá muita coisa. Eu trabalho na minha existência. Nem sempre posso existir com tranquilidade, mas todo dia colho dela algo de delicioso, de musical, de poético, ou mesmo de terrível, tempestades.
    Eu não uso guarda-chuva. Deixo que se precipite em cima de mim e eu precipício. Pois quando sinto a água das coisas, o fluido vermelho, minha existência é mais viscosa ou mais líquida. Minha pele parece mais fina e meu corpo se resfria por fora. Participo de mim mesma e nesse délà sou livre.
        Tudo em mim vira história. Eu me arrisco pela história que contarei.
     Acho que a vida deve ser dicotômica. Que eu posso ser pedra e sapo ao mesmo tempo. Sol e chuva.
        Às vezes alguns se vão. Rolam pelas ruas antigas da dos bairros que vivi. Eu não os prendo. As pessoas não são crias. Nem as palavras.
         Tudo que eu amo está livre.
          

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Infarto do miocárdio

A inveja come o coração da gente.
É um vírus inato. Adormecido no corpo. Alguma coisa o anima.
É um estopim para uma revolução celular e um tumor brota como uma flor nos órgãos.
As veias todas se retorcem.
Um arrepio percorre todos os nossos sentidos.
Um aviso de que se está vivo. De que se é sozinho. De que se tem ardências. De que os chacras vibram. De que o sangue percorre a 23km/h e por isso é quente. De que sou um corpo fechado.
De que não suporto a ideia do outro.
Estou vivo e meu corpo se arrepia.
Fiquei feliz e imediatamente enrubescido.
Depois uma dormência tomou meus braços
E uma grande culpa por estar imóvel diante disso.
Poderia ser eu. Poderia ser meu.
Mas não é
E permaneço no trópico de mim mesmo
Inerte
na poesia de pertencer à minha própria natureza
de ser mórula blástula gástrula nêurula
virar um templo de células
um ecossistema em crise
e depois despir-me
em aminoácidos
que nutrem essa própria terra
trópico
morena
indígena

Brasil.

Steak Tartare


O prato que se come cru.
Não gosto de sangue, no entanto ele insiste em me habitar e caminhar em minhas trilhas.
É cru e eu o como amargamente. O sangue escorre.
É bom quando se tem anemia.
Aliás é uma doença típica de alguém que não suporta sangue, não suporta ser gente.
Mas agora me sinto viva. Todas as minhas metáforas despertaram. E quando a inveja desperta, passo a habitar no outro e sentir a outra face do mesmo movimento que nele ocorre, é algo de simbiótico.
E me pergunto: o que é que eu fiz para não merecer isso?
Talvez não seja a hora. Não desejo o mal de ninguém, mas sinto um minuto, talvez dois de uma raiva metabólica... ela é natural. Como dormir é natural. Como a poesia é natural.
Estou muito viva.
Meus pêlos arrepiam-se e o meu corpo todo é tomado de uma agitação:
Por que não eu?
Porque todos os sonhos são visões e sua paisagem ainda é essa, árida. Ainda não pode se imaginar. Porque seus deleites estão bem mais próximos e não podem ser sintetizados do outro lado do mundo. Porque seus dogmas ainda não foram desfeitos. Porque é preciso ser um campo arado para que as raízes brotem. É preciso que haja fungos. Rizóides. Estar tomado por fractais e pequenos poemas.
É preciso ser doce.
Mas a minha seiva anda espessa. Talvez por não compreendê-la, minha boca se amargue um pouco.
Já são quase dois minutos.


sexta-feira, 3 de maio de 2013

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

De máquinas


(Vênus fala ao caminhante)

Abriu-se a máquina do mundo
e tão deselegante
revelou:

o som saiu 
depressa
e se calou