domingo, 13 de outubro de 2013

Fábulas

   Desde os quatorze anos eu lavo minhas roupas. Minha mãe um dia me disse que eu encardia demais as meias, que era difícil lavá-las e que eu deveria parar de andar descalçada. Então, eu passei a lavar minhas meias. Naquela época, nós também deixamos de comer carne todo dia, e de comer pão francês. Isso foi importante para minhas memórias. Não fossem as meias, talvez eu ainda fosse muito calçada. Não fosse a falta do pão e do leite, talvez não os ingerisse tão deliciosamente. Da mesma forma, no ensino médio decidi que não estudaria matemática. Não era dada com números, embora atribua um número aleatório à cada pessoa que conheço. Sabia que a matemática, a química e a física me faltariam, mas eu decidi. Suportei. Nunca fugi de mim.
   Foi assim que, antes mesmo de ler Le petit prince, descobri que sou inteiramente responsável pelo que cativo. Bem como minha mãe é responsável por si mesma e pelas coisas que abarca e assim por diante: cada um segue colhendo seu dia.
       Colher é o resultado de uma lavoura. Dias e dias debaixo do sol ou da chuva. Trabalhar mesmo quando o espírito não está lá muita coisa. Eu trabalho na minha existência. Nem sempre posso existir com tranquilidade, mas todo dia colho dela algo de delicioso, de musical, de poético, ou mesmo de terrível, tempestades.
    Eu não uso guarda-chuva. Deixo que se precipite em cima de mim e eu precipício. Pois quando sinto a água das coisas, o fluido vermelho, minha existência é mais viscosa ou mais líquida. Minha pele parece mais fina e meu corpo se resfria por fora. Participo de mim mesma e nesse délà sou livre.
        Tudo em mim vira história. Eu me arrisco pela história que contarei.
     Acho que a vida deve ser dicotômica. Que eu posso ser pedra e sapo ao mesmo tempo. Sol e chuva.
        Às vezes alguns se vão. Rolam pelas ruas antigas da dos bairros que vivi. Eu não os prendo. As pessoas não são crias. Nem as palavras.
         Tudo que eu amo está livre.